¿Qué sabe la vigilia comparada con lo que sabe el sueño? [O que sabe a vigília em comparação com o que sabe o sonho?]
Décio Freitas apud Eduardo Galeano - Memoria del fuego I. Los nacimientos.
As pinturas da artista carioca Marcela Cantuária escolhidas para esta exposição manifestam a capacidade de engajar o impossível, que também pode-se chamar de o utópico, a magia, o milagre, o sonho, o mistério. Na pesquisa Mátria Livre (2016-atual), da qual se encontram dez obras nesta sala, Marcela convoca personagens do passado, militantes do presente e mulheres imaginadas. Tais figuras femininas se tornam guias insubmissas de sua poética artística.
Na pintura Juana Azurduy (2019), que representa em destaque a combatente boliviana independentista, percebemos uma confluência de narrativas. Conta a história que Azurduy pariu em campo de batalha, entre cavalos e canhões. Na obra de Marcela, a combatente está parindo sobre o continente sul-americano enquanto, ao fundo, um grupo de mulheres guerrilheiras divide espaço com um bote de refugiados. Ao unir uma personagem fundamental nos processos de independência da américa espanhola à cena dos refugiados enfrentando o mar, a artista chama atenção para o fator comum entre os dois acontecimentos: a colonização europeia do Sul Global e seus efeitos na atual situação social e política dessa região.
Nas obras Maria Bonita (2018) e Filhas do vulcão: Mamá Dolores y Mamá Tránsito (2019), vemos os cães Ligeiro e Guarany (companheiros do bando de Lampião), um cavalo azul e o vulcão Cayambe como entes cúmplices das mulheres representadas, seres animados que partilham de suas forças criadoras e de luta. Além de tais obras, outras pinturas que compõem a pesquisa Mátria Livre, como Banho de sangue (2018) e Gigantes pela própria natureza (2018), trazem em comum figuras femininas acompanhadas de elementos da natureza, de tal modo que as imagens se compreendem mediante a análise conjunta e horizontalizada dos componentes “humanos” e “não-humanos”.
— E se Célia Sánchez, Dolores Cacuango, Juana Azurduy, Leila Khaled, Marcela Reis, Margarida Alves, Maria Bonita, Nise da Silveira e Tránsito Amaguaña atravessassem os tempos e se reunissem em uma frente ampla combativa? Uma frente ampla pela defesa do Sul Global.
— E se Marcela Reis (militante conhecida durante as manifestações e ocupações estudantis de 2015, contra o projeto de reestruturação da rede escolar pública paulista) ocupasse as ruas também como monumento público?
É pela imaginação que torno presente esse panteão de mulheres figuradas nas pinturas de Marcela. Aqui, a imagem revela seu caráter de meio, isto é, de mediação entre a “realidade” e o “impossível”. Uma fotografia pode corporificar alguém pela recordação, assim como um conjunto de linhas e cores em uma superfície pode compor homenagens às que vieram antes de nós e prefigurações de um futuro sonhado, utopista. Desse modo, tais mulheres constituem a trama da tela tal como o tecido e o pigmento.
Maria da Conceição, funcionária terceirizada da Fundação Clóvis Salgado, em uma visita à montagem desta exposição durante seu horário de almoço me contou: “Minha mãe dizia que um pingo é uma letra. Então isso aqui é um dicionário”. Marcela faz falar as linhas e as cores para quem pratica a escuta desobediente; defende, assim, as formas de conhecimento para além da lógica moderna ocidental. Se nosso imaginário foi colonizado, então a arte, enquanto verdade metafórica, é uma das estruturas que suporta a magia, que acolhe o pensamento mágico. Na produção poética da artista, o pensamento mágico sintetiza temas do social e do psíquico. Seu mergulho na “realidade” é sincero e atento aos mistérios – como quando os olhos se acostumam com o escuro e passam a identificar detalhes perdidos no instante em que a luz se apagou.