O convite da Kura by Camila Yunes para a sexta edição do projeto Caixa de Pandora, que acontece após o período mais restritivo da pandemia do Covid-19, se dá pela primeira individual em São Paulo da artista carioca Marcela Cantuária. Desde 2018, o projeto traz artistas contemporâneos para dialogar com a Coleção Ivani e Jorge Yunes, que reúne obras de arte de diferentes épocas, datando desde o século II A.C até os anos 1970.
Nessa exposição está sendo exibido parte de um projeto intitulado Oráculo Urutu, realizado em parceria com o fotógrafo Pedro Garcia, com arquétipos derivados de músicas, poesia, arte e literatura brasileiras. Um dos verbetes que inspirou a primeira tela pintada do oráculo ainda em 2019 e que empresta título a essa exposição se chama Esperança Equilibrista. Trata-se de uma referência direta à canção “O Bêbado e o Equilibrista” composta por Aldir Blanc e João Bosco durante o período ditatorial, e que serviu de hino do fim da repreensão. A música imortalizada pela voz de Elis Regina, fala sobre um porvir de liberdade mesmo em uma situação de violência institucionalizada. Em uma passagem há referência à viúva Maria, do operário Manuel Fiel Filho, e Clarice Herzog, do jornalista Vladimir Herzog, mortos pelos abusos da ditadura militar. Outros títulos familiares da cultura brasileira são “Meus inimigos estão no poder” de Cazuza, “Explode coração” de Gonzaguinha, “Oculta sendo voraz” de Linn da Quebrada, “Insubmissas lágrimas de mulheres” de Conceição Evaristo, entre outros.
Na mostra, a artista carioca apresenta uma outra série inédita, tratam-se dos Oratórios, obras-homenagens às mulheres ativistas que tiveram suas trajetórias interrompidas. Fato interessante é que a caravela de Pedro Álvares de Cabral em 1500, trazia um oratório em homenagem a Nossa Senhora da Esperança que foi utilizado nas primeiras missas no Brasil, e esperança também foi o que restou na Caixa de Pandora após a libertação de todos os males, e o mote inicial deste projeto da Kura, que tem título inspirado no mito grego.A exposição relembra mulheres que marcaram a história, como forma de relembrar suas trajetórias e não deixá-las cair em esquecimento. É o caso do oratório dedicado à memória das irmãs Minerva, Pátria e María Teresa Mirabal, conhecidas como “Las Mariposas”, que foram brutalmente assassinadas por serem oposição à ditadura vigente de Rafael Leónidas Trujillo em 1960, na República Dominicana, que tiveram seu carro interceptado e sua morte forjada. A história das irmãs, infelizmente, não é muito distante dos fatos recentes no Brasil, como o assassinato de Marielle Franco, vereadora pelo estado do Rio de Janeiro e defensora dos direitos humanos. Farsa também repetida no assassinato de Dorcelina Folador uma sem-terra, professora, artista plástica e prefeita de Mundo Novo no Mato-Grosso do Sul, que lutava pelas causas dos oprimidos e teve seu mandato interrompido por seu assassinato encomendado. Outras personagens históricas relembradas são Cláudia Jones, Comandanta Ramona, Juana Ramirez y Juana Raymundo, Filhas do Sol e Julietta Bastiolli.
Um biombo em quatro partes frente-e-verso abre a exposição e também a encerra, com referências de um lado ao 2 de copas, que significa harmonia nos relacionamentos, é um bom sinal para uma nova sociedade. Já no verso, o Arcano XXI, O Mundo, que representa o fim de um ciclo e preparação para um novo começo, é o desfecho da viagem arquetípica iniciada pelo arcano sem número, o Louco. Ficando um convite a revermos nossas relações, posicionamentos e tentarmos viver neste mundo pós-pandêmico de uma forma mais respeitosa e harmônica.
Texto curatorial de Ademar Britto Junior.