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Curadoria Inês Valle Palácio do Grilo

Lisboa, Portugal 2023

 

Do Susto à Independência

Temos plena consciência de que a narrativa histórica oficial negligenciou certos episódios que inflamaram o espírito de liberdade. Ao longo dos tempos, a história da humanidade foi amplamente moldada por conceitos eurocentricos, como o humanismo, o colonialismo e o racismo, resultando na marginalização e supressão do conhecimento tradicional, local e indígena. Nesta era antropocêntrica em que vivemos, tais conceitos assombram-nos de forma contundente, instigando, assim, a necessidade inescapável de recontar a história com valores e saberes mais amplos. Neste contexto, Marcela Cantuária, ao resgatar e dar voz a histórias marginalizadas, contribui para a construção de um cenário mais inclusivo e diverso, expandindo o alcance da arte como uma forma de resistência e transformação social. A sua obra é fundamental para promover a conscientização e estimular a reflexão sobre as narrativas historicamente silenciadas, permitindo que novas perspectivas e experiências sejam compartilhadas e valorizadas.

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Nesta sua primeira exposição em Portugal, intitulada “Bestiário”, a artista conduz-nos a uma imersão na história e nas tradições da Bahia, revelando a notável jornada das mulheres que enfrentaram desafios e adversidades com coragem e determinação. Ao explorar as narrativas das mulheres baianas, ela apresenta-nos um retrato vívido de sua resiliência, destacando o papel fundamental que desempenharam na independência do Brasil. Presenteando-nos com uma mescla de universos que nos fazem deambular por entre mundos fantásticos e corrosivos, duros mas reais. A artista, traz a Portugal histórias do Brasil, histórias de mulheres que pelejaram pela liberdade – partilhando nas pinturas de maior escala desta exposição, a história da irmandade das mulheres de Saubara, conhecidas hoje como Caretas do Mingau, que combateram pela independência da Bahia no século XIX. Estas mulheres, envoltas pelo manto da noite, percorreram heroicamente as ruas e os caminhos da mata, carregando alimentos e armas até seus filhos e maridos na frente de luta. Cobertas por longos mantos brancos, carregavam panelas cheias de mingau sobre suas cabeças, entoando gemidos estridentes e perturbadores. Como almas penadas, vagueavam no breu das sombras, amedrontando as tropas lusitanas até a sua retirada.

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Nestas duas obras Marcela evoca dois fragmentos ou acontecimentos do mesmo período histórico. Num, há uma representação que se assemelha a uma premonição da ruína do Império Português no Brasil, na qual seres-mulheres “fantasmagóricos” cercam um soldado desfalecido. No outro, temos o fado inevitável do dia 2 de julho de 1823, o momento da vitória do povo baiano. Onde no primeiro plano desta pintura, as mulheres de Saubara regozijam de vitória numa clareira e ao fundo sombras negras representam soldados portugueses a fugirem por um túnel ou gruta. Estas obras carregadas de símbolos e misticismo, transportam-nos para tempos idos que se tornam cada vez mais presentes quando refletimos sobre a identidade de um povo, com a inclusão de elementos históricos e contemporâneos. Como quando, Marcela pinta um soldado “à paisana” com vestuário contemporâneo, uma t-shirt estampada com uma caravela em chamas. A caravela em chamas pode simbolizar a destruição dos navios colonizadores e exploradores que representaram o início do colonialismo, mas também uma poderosa mensagem de questionamento sobre os legados do passado ou mesmo em relação às estruturas de poder e opressão que ainda persistem na sociedade contemporânea.

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Em contraponto às representações históricas, somos catapultados por Marcela Cantuária para um mundo imaginário e mágico, por meio de cores vibrantes, num espaço, onde habitam seres mutantes, bestas e monstros antropomórficos, que a artista ricamente usa para reconstruir uma narrativa complexa da história. Estes elementos fantásticos aludem ao lado mágico e imaginativo que todas as histórias de luta também carregam, adicionando uma camada de profundidade e evocando a imaginação do espectador. Destacam-se referências aos arcanos menores do tarot, que desempenham um papel significativo nas obras. Estes, que preveem destinos foram representados nos quatro cantos da pintura, trazendo uma dimensão simbólica e misteriosa à narrativa. Além disso, a presença da águia tricéfala carregando uma alma, ou mesmo, as mulheres-sardinha, com cabeças de heroínas baianas e corpos de sardinhas lusas que pairam sobre a narrativa da pintura. Referências simbólicas que adicionam camadas de significado e convidam o espectador a mergulhar em uma interpretação mais profunda da obra de Marcela, explorando os mistérios e os múltiplos sentidos que cada elemento traz consigo.

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Por fim, a obra “Serpentária” é uma obra marcante da exposição. Trata-se de um oratório habitado por uma quimera, uma figura híbrida que combina características de mulher, serpente e loba. Esta figura pode ser interpretada como um oráculo, uma entidade que detém conhecimento e sabedoria transcendental. O santuário-museu, onde esta quimera vive, é um espaço sagrado, que ostenta um espelho que reflete e multiplica tanto a presença da quimera, como as inúmeras micro-pinturas de seres metamórficos que adornam-no, criando um ambiente místico. Simultaneamente, ao abrir-nos as portas do seu santuário, somos convidados a para um mundo de transformação e autodescoberta, onde esta torna-se uma guia para explorarmos os temas centrais da exposição: luta, liberdade e independência.

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